João de Almeida Santos
O «Espaço Intermédio» é um livro de Silvano Tagliagambe, publicado em Itália em 2008, pelas edições da Universidade Bocconi («Lo Spazio Intermedio. Rete, individuo e comunità»), de Milão, e, recentemente, em Madrid, pelas edições «Fragua», em cooperação com o ThinkCom, Instituto de Pensamiento Estratégico, da Universidade Complutense de Madrid, dirigido pelo Prof. Jesús Timoteo (Tagliagambe, Silvano, 2009, El Espacio Intermedio. Red, individuo y comunidad, Madrid, Fragua, pp. 240). O autor, filósofo italiano, professor nas Universidades de Roma, «La Sapienza», e de Sassari, na Sardenha, propõe-nos, nesta interessante obra, uma reflexão em torno do conceito de «espaço intermédio», como proposta de resolução daquele que vem sendo, afinal, o mais antigo problema com que, há séculos, se confronta a tradição filosófica: o problema da mediação entre ser e pensamento, género e indivíduo, universal e particular. Problema que o Professor Tagliagambe identifica com uma fórmula feliz e eficaz: a «ansiedade cartesiana», filha de um dualismo incomponível entre a ideia e a matéria que tanto trabalho tem dado à filosofia ocidental.
1. «O Espaço Intermédio, rede, indivíduo e comunidade» é um excelente livro: cientificamente culto e conceptualmente rigoroso. Rico na diversidade de enfoques, de perspectivas sobre o tema central, mas rigorosamente desenvolvido segundo um claríssimo fio condutor: precisamente a ideia de espaço intermédio. Uma ideia verificada nos vários ramos do saber, com incursões analíticas nos vários domínios das ciências, desde a geoquímica, com o russo Vernadski, até à biologia, com Stuart Kauffmann ou o russo Alexei Ujtomskij: o «mundo intermédio», dizia este, teorizado e elaborado conceptualmente por Florenskij, não é só uma entidade abstracta, mas também a dimensão em que se forma e se desenvolve a identidade pessoal de cada um de nós; desde teoria da literatura, com Michaïl Bachtin, à filosofia, com Thomas Kuhn ou Wittgenstein, à neuropsicologia, com Luriya, à linguística e à teoria da linguagem, com Vygotski, ou ao universo das redes de comunicações, com Chris Anderson, etc., etc..
Ou seja, um conjunto vastíssimo e diversificado de argumentações científicas em torno da fundamentalidade do conceito de «espaço intermédio».
2. O conceito de «espaço intermédio», de resto, eu próprio o encontrei, e valorizei, pela primeira vez, no livro de Joshua Meyrowitz «No sense of place. The impact of electronic media on social behaviour (New York, Oxford University Press, 1985). Dei-lhe uma certa atenção na minha tese de doutoramento e, em particular, tendo em conta a excepcionalidade da obra onde o encontrei (Meyrowitz, por esta sua obra, foi justamente considerado como um segundo McLuhan). Mas hoje, depois de ter reflectido sobre esta obra de Silvano Tagliagambe, ter-lhe-ia dado, sem qualquer dúvida, uma importância muito maior. Rezava assim, a passagem de «No Sense of Place», tendo como pano de fundo os media electrónicos:
«partindo dos conceitos de espaço de bastidores e de palco, o novo comportamento produzido pela fusão das situações [a de palco e a de bastidor] pode ser definido como “espaço intermédio” (…). E continua Meyrowitz: «Instaura-se um comportamento de espaço intermédio quando os espectadores assumem uma perspectiva “de palco lateral”. Isto é, eles vêem algumas partes dos bastidores tradicionais e algumas partes do palco tradicional; vêem o actor passar dos bastidores para o palco e vice-versa».
A antiga fronteira passa, pois, de muro separador a ponto de contacto. Ou melhor: acaba a fronteira. E diria mais, entrando a fundo na tese de Meyrowitz: com os media electrónicos, as fronteiras convencionais, sejam elas geracionais, sexuais ou políticas, desaparecem, alterando-se, assim, a própria geografia situacional dos indivíduos. Ou seja, todos eles passam a ocupar um espaço intermédio a partir do qual se relacionam cognitivamente com o real e com os outros. Ou seja, a separação radical tradicional entre público e representação desaparece no «espaço intermédio», uma vez que desaparece a separação entre bastidores e palco, desencadeando, assim, uma real interacção entre a representação e o público. Com efeito, ao conhecer os bastidores da representação, o público passa a ser também virtualmente actor, sem deixar de ser espectador. Ou seja, a fronteira que demarcava estes dois territórios desaparece, dando lugar a uma outra fronteira que já não só separa, mas também une, põe em relação, liga, funcionando como ponte, permitindo que o espectador interaja com o palco, com os actores e a própria representação. A invasão do olhar do público sobre os bastidores não pode deixar de condicionar a própria representação em todas as suas dimensões.
Também Jesús Timoteo, no seu excelente «Gestión del poder diluído», de 2005 (Madrid, Pearson: 244), refere este conceito aos media:
os media, diz ele, «conseguiram que os níveis de decisão dos indivíduos não estejam situados nem em âmbitos de massas nem sequer num âmbito de isolamento pessoal, mas sim num espaço intermédio de esfera social».
3. Eu acrescentaria que este é precisamente o ponto de passagem onde se estrutura o novo espaço público deliberativo e onde entram a política deliberativa e a democracia deliberativa, no sentido em que as concebe o Habermas de «A inclusão do Outro» (Die Einbeziehung des Anderen. Studien zur politischen Theorie, Frankfurt/A/Main, Suhrkamp, 1996) ou de «Facticidade e validade» (Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt/A/Main, Suhrkamp, 1992), ou seja, lá onde o «espaço intermédio» é o lugar onde ocorre essencialmente esse processo que conduz à conversão e à institucionalização política e institucional da opinião pública que nele se exprime. É isso mesmo que diz Habermas:
«No interior e no exterior dos corpos políticos programados para deliberar, estas comunicações sem sujeito formam “arenas” onde – acerca de temas relevantes para toda a sociedade e em torno de matérias que necessitam de regulação – pode acontecer uma formação mais ou menos racional da opinião e da vontade. A formação informal da opinião desemboca em decisões eleitorais institucionalizadas e em deliberações legislativas através das quais o poder comunicativamente produzido é transformado em poder administrativamente utilizável» («L'inclusione dell’altro, Milano, Feltrinelli, 1998: 244-245).
4. O que encontramos, portanto, nesta obra do Prof. Tagliagambe, quase como a confirmar esta sintonia, é uma formulação da emergência de um «espaço intermédio» que parece coincidir com a Habermas, mas sobretudo com a de Meyrowitz, ao concebê-lo como uma nova, palavras suas, «intimidade entre público e privado» ou como o «go between entre individual e social» (2009: 213). Uma intimidade só possível quando as fronteiras deixam de ser muros inultrapassáveis para passarem a ser espaços de intermediação e de conexão, onde, portanto, o individual se converte em social e o social retro-age sobre o individual. Mas uma retro-acção de novo tipo, já que o individual, neste modelo, nunca pode ser subsumido por esse universal que é o público ou o social. E não pode precisamente porque ele já reside num «espaço intermédio».
Pois bem, este livro do Prof. Tagliagambe é uma vasta e variegada fundamentação da pregnância actual do conceito de «espaço intermédio» e da ruptura que ele opera com o velho individualismo metodológico. Uma fundamentação que encontra suporte num complexo disciplinar e científico muito vasto e rico. Aliás, o título do livro condensa muito bem o programa que vem desenvolvido no seu interior. Vejamos o título: O Espaço Intermédio - rede, indivíduo, comunidade.
5. Comecemos pela Rede. A Rede é um «espaço entre», comandado por uma lógica relacional, não convertível numa lógica substancialista, aristotélica, nem na relação sujeito-objecto. Ou seja, colocando o meu discurso mais perto do discurso do autor: com a rede verifica-se uma passagem do pensamento centrado na ideia de substância (que os gregos designavam por tò hypokeímenon, e, que, depois, o racionalismo e o idealismo modernos haveriam de converter em sujeito), para o pensamento centrado na ideia de relação, enquanto «modalidade primitiva do real», lá onde o sujeito é constituído por uma matriz relacional, seja no plano diacrónico seja no plano da sincrónico, seja no plano interno seja no plano externo. Lá onde, afinal, o sujeito adquire também o estatuto de uma variável, ou seja - para usar as palavras do Habermas da «Querela sobre o Positivismo» - onde se pode dar uma síntese entre substância e função.
Na rede, desenvolve-se um saber relacional e uma «inteligência conectiva» que é, ao mesmo tempo, uma «inteligência colectiva», mas multipolar – eu diria também «with no sense of place», glosando o título do livro de Meyrowitz -, uma inteligência, pois, que reside nesse «espaço intermédio» que é a própria rede.
6. Depois, o Indivíduo. O indivíduo não é aqui concebido como o sujeito próprio da lógica aristotélica. O indivíduo constitui-se como um processo mediado. Precisamente no sentido em que o concebe Gramsci: l’uomo è ciò che può diventare, o homem é aquilo em que se pode tornar. Vale a pena citá-lo, a partir dos «Quaderni del Carcere»:
«ponendoci la domanda che cosa è l’uomo, vogliamo dire: che cosa può diventare», ou «l’uomo è un processo e precisamente è il processo dei suoi atti» ou, ainda, aproximando-nos mais, «ogni individuo non è solo la sintesi dei rapporti esistenti, ma anche della storia di questi rapporti, cioè il riassunto di tutto il passato» (Quaderni, Torino, Einaudi, 1975: 1343-1346; Q., 10).
Esse indivíduo de que Gramsci fala faz parte do género humano precisamente através das várias comunidades em que participa, sendo, portanto, também, modelado e construído por elas. É claro que em Gramsci a vontade e a razão individuais também lá estão para desempenhar o seu papel naquela que se poderia conceber como uma ontologia social, onde o homem seria mais um resultado do que um processo onde ele próprio participaria activamente:
«occorre concepire l’uomo», diz ele, «come una serie di rapporti attivi (un processo) in cui se l’individualità ha la massima importanza, non è però il solo elemento da considerare», porque, para Gramsci, a humanidade é composta pelo indivíduo, pelos outros homens e pela natureza, e onde as relações são orgânicas (Q., 1345).
Ou seja, retomando o livro aqui em causa, o indivíduo torna-se cada vez mais comunidade, na medida em que a comunidade o «sobredetermina», para usar o feliz conceito do Althusser de «Pour Marx» [1965] (Paris, Maspero, 1973, 87-116; 206-224), modelando-o, ao mesmo tempo que o obriga a olhar para si próprio como um ser-em-comunidade, complexo, que contém em si uma vasta sedimentação dos seus próprios estádios de desenvolvimento num processo evolutivo e interactivo com o exterior. É por isso que Tagliagambe fala também, não de «pertença» do indivíduo ou sujeito na sua relação com uma organização, mas de «multipertença» (de diferentes nível, significado e valor) e fala da natureza anfíbia do homem (seguindo Hegel), a significar a sua relação de equilíbrio dinâmica, activa, aberta e plural com o mundo exterior (2009: 105-106), que retro-age sobre ele, modificando-o e articulando-o (2009: 108-110).
Trata-se, pois, de um conceito de homem bem afastado das visões essencialistas, metafísicas ou subjectivistas da natureza humana.
7. Finalmente, a Comunidade. A interpenetração entre indivíduo e comunidade compreende-se muito bem se a pensarmos a partir da rede: nem o indivíduo é subsumido nela, nem a comunidade é subsumida no indivíduo/sujeito. Pelo contrário, a comunidade que se constitui no ciberespaço pressupõe uma fortíssima afirmação do indivíduo singular, possibilidade que não era visível na era dos media convencionais, porquanto ele sofria uma inevitável compressão a cargo de mediadores centrados subjectivamente, quer como sujeitos produtores de informação quer como organização-emissora de informação, ou seja, como sujeitos detentores de um exlusivo poder administrativo, discricionário e instrumental: editores, «gatekeepers», managers, proprietários. De resto, a lógica «broadcasting» é uma lógica própria da relação sujeito-objecto, emissor-receptor, produtor-consumidor. Ou seja, é uma lógica de natureza instrumental, para usar a modulação conceptual da Escola de Frankfurt.
Ora acontece que, com a Rede, esta comunidade se constitui como um verdadeiro «espaço intermédio» onde não há extremos em oposição directa ou relações puramente instrumentais, mas sim variáveis em relação, dotadas de densidade ontológica.
Castells estabeleceu uma interessante distinção entre a lógica tradicional - de tipo sujeito/objecto, substancialista e virtualmente instrumental, presente nos media convencionais, que se movem segundo o módulo «broadcasting» e no interior de uma relação de tipo one-to-many - e a lógica relacional, que está presente na rede e nas comunidades que nela estão integradas. A comunidade virtual do ciberespaço é uma comunidade que não tende a anular a liberdade do sujeito individual, como acontecia na generalidade das comunidades tradicionais. Antes, pelo contrário, ela devolve-lhe uma centralidade que não possuía sequer na sociedade mediática, abrindo-lhe um espaço de intervenção activa na comunidade, livre de mediações de tipo administrativo, próprias dos velhos e poderosos «gatekeepers» ou senhores da opinião.
8. O que aqui se passa é, afinal, algo que os filósofos sempre procuraram, ao pretenderem resolver aquilo a que Tagliagambe chama «ansiedade cartesiana», resultante do dualismo incomponível entre a ideia e o real, o género e o indivíduo, o sujeito e o objecto, o universal e o particular. O «espaço intermédio» é a solução que escapa aos problemas de subsunção recíproca quando o dualismo entre ser-pensamento procura superar-se sem sair de si. Uma solução diferente da que Heidegger propõe com esse grande mediador que é o Ser, esse «transcentente puro e simples» («Sein ist das transcendens schlechthin», de que fala na Carta sobre o Humanismo (Paris, Aubier, 1964, 92-93), mas mais próxima daquela que vê na instituição jurídica um «espaço intermédio» que tem como missão desenvolver um processo de funcionalização do singular ao universal, e vice-versa, e que representa, ao mesmo tempo, esse hibridismo que Hegel vê no homem e que já Maquiavel também via, quando, no «Príncipe», falava da necessidade de conjugar no exercício do poder «la golpe e il lione», o leão e a raposa, o pensamento e a força, vista essa natureza centáurica ou híbrida do homem.
9. Só que o novo «espaço intermédio» é algo que verdadeiramente conserva e supera, mas para além do registo hegeliano da Aufhebung, ainda demasiado prisioneira de uma filosofia do sujeito. Como se se tratasse de uma espécie de ontologia da relação. Este espaço tem, assim, muitas virtualidades, sobretudo no processo evolutivo de uma democracia que está a encontrar limites tais que a podem tornar funcionalmente inútil. Este «espaço intermédio», que não é uma utopia, já que ele é visível em todos os planos do sistema-vida em que nos inserimos e movemos, como tão bem este livro do Prof. Silvano Tagliagambe nos demonstra, pode constituir, se o intensificarmos, o assumirmos e fizermos dele o nosso verdadeiro «habitat» humano, uma poderosa alavanca para sairmos dos impasses que nos estão a bater à porta cada vez com mais intensidade, desde o equilíbrio do ecossistema até aos desequilíbrios de uma democracia electivamente cada vez mais anémica. E o livro do Prof. Tagliagambe, pelo seu vigor argumentativo, pode muito bem constituir um excelente tónico para a luta daqueles que aliam a emancipação individual, cívica e cultural, ao compromisso para com o próprio, e cada vez mais ameaçado, ecossistema.
10. O espaço intermédio é, afinal, o ambiente onde melhor pode desenvolver-se uma interacção produtiva e sustentável entre indivíduo e sistema, substância e função, vontade e meio. Traduzindo socialmente estas relações, podemos dizer que o espaço intermédio é o meio onde melhor se conjugam a «ética de convicção» e a «ética da responsabilidade». E é a rede que constitui essa teia inovadora onde, finalmente, é possível conjugar a ideia de comunidade com a plena afirmação da singularidade individual. Onde a máxima liberdade pode, de facto, conviver com a máxima responsabilidade, dando, assim, voz ao kantiano imperativo categórico: «age como se a máxima da tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal» (Kant, E., 1966, Critique de la raison pratique, Paris, PUF, 30).
1. «O Espaço Intermédio, rede, indivíduo e comunidade» é um excelente livro: cientificamente culto e conceptualmente rigoroso. Rico na diversidade de enfoques, de perspectivas sobre o tema central, mas rigorosamente desenvolvido segundo um claríssimo fio condutor: precisamente a ideia de espaço intermédio. Uma ideia verificada nos vários ramos do saber, com incursões analíticas nos vários domínios das ciências, desde a geoquímica, com o russo Vernadski, até à biologia, com Stuart Kauffmann ou o russo Alexei Ujtomskij: o «mundo intermédio», dizia este, teorizado e elaborado conceptualmente por Florenskij, não é só uma entidade abstracta, mas também a dimensão em que se forma e se desenvolve a identidade pessoal de cada um de nós; desde teoria da literatura, com Michaïl Bachtin, à filosofia, com Thomas Kuhn ou Wittgenstein, à neuropsicologia, com Luriya, à linguística e à teoria da linguagem, com Vygotski, ou ao universo das redes de comunicações, com Chris Anderson, etc., etc..
Ou seja, um conjunto vastíssimo e diversificado de argumentações científicas em torno da fundamentalidade do conceito de «espaço intermédio».
2. O conceito de «espaço intermédio», de resto, eu próprio o encontrei, e valorizei, pela primeira vez, no livro de Joshua Meyrowitz «No sense of place. The impact of electronic media on social behaviour (New York, Oxford University Press, 1985). Dei-lhe uma certa atenção na minha tese de doutoramento e, em particular, tendo em conta a excepcionalidade da obra onde o encontrei (Meyrowitz, por esta sua obra, foi justamente considerado como um segundo McLuhan). Mas hoje, depois de ter reflectido sobre esta obra de Silvano Tagliagambe, ter-lhe-ia dado, sem qualquer dúvida, uma importância muito maior. Rezava assim, a passagem de «No Sense of Place», tendo como pano de fundo os media electrónicos:
«partindo dos conceitos de espaço de bastidores e de palco, o novo comportamento produzido pela fusão das situações [a de palco e a de bastidor] pode ser definido como “espaço intermédio” (…). E continua Meyrowitz: «Instaura-se um comportamento de espaço intermédio quando os espectadores assumem uma perspectiva “de palco lateral”. Isto é, eles vêem algumas partes dos bastidores tradicionais e algumas partes do palco tradicional; vêem o actor passar dos bastidores para o palco e vice-versa».
A antiga fronteira passa, pois, de muro separador a ponto de contacto. Ou melhor: acaba a fronteira. E diria mais, entrando a fundo na tese de Meyrowitz: com os media electrónicos, as fronteiras convencionais, sejam elas geracionais, sexuais ou políticas, desaparecem, alterando-se, assim, a própria geografia situacional dos indivíduos. Ou seja, todos eles passam a ocupar um espaço intermédio a partir do qual se relacionam cognitivamente com o real e com os outros. Ou seja, a separação radical tradicional entre público e representação desaparece no «espaço intermédio», uma vez que desaparece a separação entre bastidores e palco, desencadeando, assim, uma real interacção entre a representação e o público. Com efeito, ao conhecer os bastidores da representação, o público passa a ser também virtualmente actor, sem deixar de ser espectador. Ou seja, a fronteira que demarcava estes dois territórios desaparece, dando lugar a uma outra fronteira que já não só separa, mas também une, põe em relação, liga, funcionando como ponte, permitindo que o espectador interaja com o palco, com os actores e a própria representação. A invasão do olhar do público sobre os bastidores não pode deixar de condicionar a própria representação em todas as suas dimensões.
Também Jesús Timoteo, no seu excelente «Gestión del poder diluído», de 2005 (Madrid, Pearson: 244), refere este conceito aos media:
os media, diz ele, «conseguiram que os níveis de decisão dos indivíduos não estejam situados nem em âmbitos de massas nem sequer num âmbito de isolamento pessoal, mas sim num espaço intermédio de esfera social».
3. Eu acrescentaria que este é precisamente o ponto de passagem onde se estrutura o novo espaço público deliberativo e onde entram a política deliberativa e a democracia deliberativa, no sentido em que as concebe o Habermas de «A inclusão do Outro» (Die Einbeziehung des Anderen. Studien zur politischen Theorie, Frankfurt/A/Main, Suhrkamp, 1996) ou de «Facticidade e validade» (Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt/A/Main, Suhrkamp, 1992), ou seja, lá onde o «espaço intermédio» é o lugar onde ocorre essencialmente esse processo que conduz à conversão e à institucionalização política e institucional da opinião pública que nele se exprime. É isso mesmo que diz Habermas:
«No interior e no exterior dos corpos políticos programados para deliberar, estas comunicações sem sujeito formam “arenas” onde – acerca de temas relevantes para toda a sociedade e em torno de matérias que necessitam de regulação – pode acontecer uma formação mais ou menos racional da opinião e da vontade. A formação informal da opinião desemboca em decisões eleitorais institucionalizadas e em deliberações legislativas através das quais o poder comunicativamente produzido é transformado em poder administrativamente utilizável» («L'inclusione dell’altro, Milano, Feltrinelli, 1998: 244-245).
4. O que encontramos, portanto, nesta obra do Prof. Tagliagambe, quase como a confirmar esta sintonia, é uma formulação da emergência de um «espaço intermédio» que parece coincidir com a Habermas, mas sobretudo com a de Meyrowitz, ao concebê-lo como uma nova, palavras suas, «intimidade entre público e privado» ou como o «go between entre individual e social» (2009: 213). Uma intimidade só possível quando as fronteiras deixam de ser muros inultrapassáveis para passarem a ser espaços de intermediação e de conexão, onde, portanto, o individual se converte em social e o social retro-age sobre o individual. Mas uma retro-acção de novo tipo, já que o individual, neste modelo, nunca pode ser subsumido por esse universal que é o público ou o social. E não pode precisamente porque ele já reside num «espaço intermédio».
Pois bem, este livro do Prof. Tagliagambe é uma vasta e variegada fundamentação da pregnância actual do conceito de «espaço intermédio» e da ruptura que ele opera com o velho individualismo metodológico. Uma fundamentação que encontra suporte num complexo disciplinar e científico muito vasto e rico. Aliás, o título do livro condensa muito bem o programa que vem desenvolvido no seu interior. Vejamos o título: O Espaço Intermédio - rede, indivíduo, comunidade.
5. Comecemos pela Rede. A Rede é um «espaço entre», comandado por uma lógica relacional, não convertível numa lógica substancialista, aristotélica, nem na relação sujeito-objecto. Ou seja, colocando o meu discurso mais perto do discurso do autor: com a rede verifica-se uma passagem do pensamento centrado na ideia de substância (que os gregos designavam por tò hypokeímenon, e, que, depois, o racionalismo e o idealismo modernos haveriam de converter em sujeito), para o pensamento centrado na ideia de relação, enquanto «modalidade primitiva do real», lá onde o sujeito é constituído por uma matriz relacional, seja no plano diacrónico seja no plano da sincrónico, seja no plano interno seja no plano externo. Lá onde, afinal, o sujeito adquire também o estatuto de uma variável, ou seja - para usar as palavras do Habermas da «Querela sobre o Positivismo» - onde se pode dar uma síntese entre substância e função.
Na rede, desenvolve-se um saber relacional e uma «inteligência conectiva» que é, ao mesmo tempo, uma «inteligência colectiva», mas multipolar – eu diria também «with no sense of place», glosando o título do livro de Meyrowitz -, uma inteligência, pois, que reside nesse «espaço intermédio» que é a própria rede.
6. Depois, o Indivíduo. O indivíduo não é aqui concebido como o sujeito próprio da lógica aristotélica. O indivíduo constitui-se como um processo mediado. Precisamente no sentido em que o concebe Gramsci: l’uomo è ciò che può diventare, o homem é aquilo em que se pode tornar. Vale a pena citá-lo, a partir dos «Quaderni del Carcere»:
«ponendoci la domanda che cosa è l’uomo, vogliamo dire: che cosa può diventare», ou «l’uomo è un processo e precisamente è il processo dei suoi atti» ou, ainda, aproximando-nos mais, «ogni individuo non è solo la sintesi dei rapporti esistenti, ma anche della storia di questi rapporti, cioè il riassunto di tutto il passato» (Quaderni, Torino, Einaudi, 1975: 1343-1346; Q., 10).
Esse indivíduo de que Gramsci fala faz parte do género humano precisamente através das várias comunidades em que participa, sendo, portanto, também, modelado e construído por elas. É claro que em Gramsci a vontade e a razão individuais também lá estão para desempenhar o seu papel naquela que se poderia conceber como uma ontologia social, onde o homem seria mais um resultado do que um processo onde ele próprio participaria activamente:
«occorre concepire l’uomo», diz ele, «come una serie di rapporti attivi (un processo) in cui se l’individualità ha la massima importanza, non è però il solo elemento da considerare», porque, para Gramsci, a humanidade é composta pelo indivíduo, pelos outros homens e pela natureza, e onde as relações são orgânicas (Q., 1345).
Ou seja, retomando o livro aqui em causa, o indivíduo torna-se cada vez mais comunidade, na medida em que a comunidade o «sobredetermina», para usar o feliz conceito do Althusser de «Pour Marx» [1965] (Paris, Maspero, 1973, 87-116; 206-224), modelando-o, ao mesmo tempo que o obriga a olhar para si próprio como um ser-em-comunidade, complexo, que contém em si uma vasta sedimentação dos seus próprios estádios de desenvolvimento num processo evolutivo e interactivo com o exterior. É por isso que Tagliagambe fala também, não de «pertença» do indivíduo ou sujeito na sua relação com uma organização, mas de «multipertença» (de diferentes nível, significado e valor) e fala da natureza anfíbia do homem (seguindo Hegel), a significar a sua relação de equilíbrio dinâmica, activa, aberta e plural com o mundo exterior (2009: 105-106), que retro-age sobre ele, modificando-o e articulando-o (2009: 108-110).
Trata-se, pois, de um conceito de homem bem afastado das visões essencialistas, metafísicas ou subjectivistas da natureza humana.
7. Finalmente, a Comunidade. A interpenetração entre indivíduo e comunidade compreende-se muito bem se a pensarmos a partir da rede: nem o indivíduo é subsumido nela, nem a comunidade é subsumida no indivíduo/sujeito. Pelo contrário, a comunidade que se constitui no ciberespaço pressupõe uma fortíssima afirmação do indivíduo singular, possibilidade que não era visível na era dos media convencionais, porquanto ele sofria uma inevitável compressão a cargo de mediadores centrados subjectivamente, quer como sujeitos produtores de informação quer como organização-emissora de informação, ou seja, como sujeitos detentores de um exlusivo poder administrativo, discricionário e instrumental: editores, «gatekeepers», managers, proprietários. De resto, a lógica «broadcasting» é uma lógica própria da relação sujeito-objecto, emissor-receptor, produtor-consumidor. Ou seja, é uma lógica de natureza instrumental, para usar a modulação conceptual da Escola de Frankfurt.
Ora acontece que, com a Rede, esta comunidade se constitui como um verdadeiro «espaço intermédio» onde não há extremos em oposição directa ou relações puramente instrumentais, mas sim variáveis em relação, dotadas de densidade ontológica.
Castells estabeleceu uma interessante distinção entre a lógica tradicional - de tipo sujeito/objecto, substancialista e virtualmente instrumental, presente nos media convencionais, que se movem segundo o módulo «broadcasting» e no interior de uma relação de tipo one-to-many - e a lógica relacional, que está presente na rede e nas comunidades que nela estão integradas. A comunidade virtual do ciberespaço é uma comunidade que não tende a anular a liberdade do sujeito individual, como acontecia na generalidade das comunidades tradicionais. Antes, pelo contrário, ela devolve-lhe uma centralidade que não possuía sequer na sociedade mediática, abrindo-lhe um espaço de intervenção activa na comunidade, livre de mediações de tipo administrativo, próprias dos velhos e poderosos «gatekeepers» ou senhores da opinião.
8. O que aqui se passa é, afinal, algo que os filósofos sempre procuraram, ao pretenderem resolver aquilo a que Tagliagambe chama «ansiedade cartesiana», resultante do dualismo incomponível entre a ideia e o real, o género e o indivíduo, o sujeito e o objecto, o universal e o particular. O «espaço intermédio» é a solução que escapa aos problemas de subsunção recíproca quando o dualismo entre ser-pensamento procura superar-se sem sair de si. Uma solução diferente da que Heidegger propõe com esse grande mediador que é o Ser, esse «transcentente puro e simples» («Sein ist das transcendens schlechthin», de que fala na Carta sobre o Humanismo (Paris, Aubier, 1964, 92-93), mas mais próxima daquela que vê na instituição jurídica um «espaço intermédio» que tem como missão desenvolver um processo de funcionalização do singular ao universal, e vice-versa, e que representa, ao mesmo tempo, esse hibridismo que Hegel vê no homem e que já Maquiavel também via, quando, no «Príncipe», falava da necessidade de conjugar no exercício do poder «la golpe e il lione», o leão e a raposa, o pensamento e a força, vista essa natureza centáurica ou híbrida do homem.
9. Só que o novo «espaço intermédio» é algo que verdadeiramente conserva e supera, mas para além do registo hegeliano da Aufhebung, ainda demasiado prisioneira de uma filosofia do sujeito. Como se se tratasse de uma espécie de ontologia da relação. Este espaço tem, assim, muitas virtualidades, sobretudo no processo evolutivo de uma democracia que está a encontrar limites tais que a podem tornar funcionalmente inútil. Este «espaço intermédio», que não é uma utopia, já que ele é visível em todos os planos do sistema-vida em que nos inserimos e movemos, como tão bem este livro do Prof. Silvano Tagliagambe nos demonstra, pode constituir, se o intensificarmos, o assumirmos e fizermos dele o nosso verdadeiro «habitat» humano, uma poderosa alavanca para sairmos dos impasses que nos estão a bater à porta cada vez com mais intensidade, desde o equilíbrio do ecossistema até aos desequilíbrios de uma democracia electivamente cada vez mais anémica. E o livro do Prof. Tagliagambe, pelo seu vigor argumentativo, pode muito bem constituir um excelente tónico para a luta daqueles que aliam a emancipação individual, cívica e cultural, ao compromisso para com o próprio, e cada vez mais ameaçado, ecossistema.
10. O espaço intermédio é, afinal, o ambiente onde melhor pode desenvolver-se uma interacção produtiva e sustentável entre indivíduo e sistema, substância e função, vontade e meio. Traduzindo socialmente estas relações, podemos dizer que o espaço intermédio é o meio onde melhor se conjugam a «ética de convicção» e a «ética da responsabilidade». E é a rede que constitui essa teia inovadora onde, finalmente, é possível conjugar a ideia de comunidade com a plena afirmação da singularidade individual. Onde a máxima liberdade pode, de facto, conviver com a máxima responsabilidade, dando, assim, voz ao kantiano imperativo categórico: «age como se a máxima da tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal» (Kant, E., 1966, Critique de la raison pratique, Paris, PUF, 30).