João de Almeida Santos
«O nosso objectivo é mudar o mundo»
«Nuestro objetivo es cambiar el mundo»
Eric Schmid, chefe executivo do Google
I. «Senhor HU, deite abaixo este Grande Firewall!»
Regresso a um tema que ganha cada vez mais importância nos dias que correm. A propósito do caso Google/China, alguém já falou de um combate digital entre um David e um Golias. Outros dizem que só a consciência da própria força é que permitiu ao Google enfrentar abertamente o colosso chinês, em vez de negociar nos bastidores, como é próprio do mundo empresarial (PISANI, Francis, “Cyber power”: Google se enfrenta a China «EL País», 02.02.10, p. 27). A questão motivou uma intervenção de Hillary Clinton, exigindo publicamente respeito pela Web a nível global e defendendo a liberdade universal online. Com refere Timothy Garton Ash (La guerra fredda digitale tra USA e Cina, «La Repubblica», 1.2.10, p. 27), sem ser tão radical como Ronald Reagan - quando, dirigindo-se a Gorbatchov, disse, em Berlim, «Senhor Gorbatchov, deite abaixo este Muro» -, Hillary disse, de facto: «Senhor Hu, deite abaixo este Grande Firewall»!
Sobretudo, o que está em questão, com a actualíssima questão chinesa (ou iraniana), é a relação entre a universalidade da Rede, a liberdade individual e as soberanias nacionais. Questão que se põe à China ou ao Irão, outro protagonista da censura digital, e em geral àqueles que já são considerados, pelos Repórteres Sem Fronteiras (ALANDETE, David, La red espía tus movimientos, in «El País» 08.02.10, p. 32-33) , como «os 12 inimigos da Internet» (Cuba, Egipto, Coreia do Norte, Síria, Tunísia, Arábia Saudita, Vietname, Myanmar, Turkemenistão e Uzbekistão, além da China e do Irão), mas que se põe também às democracias ocidentais. É claro que a verdadeira questão é a questão da liberdade de informação e de comunicação, sobretudo quando, por um lado, estamos perante uma escala global e um acesso globalmente livre (em teoria) e, por outro, estamos perante sistemas políticos nacionais mais ou menos autoritários, tradicionalistas ou fundamentalistas, que não podem conviver com a livre circulação da informação, vertical ou horizontal que seja. E também é claro que não podemos falar somente em liberdade política, de opinião, de informação e de acesso ao conhecimento. Falamos também de entretenimento, de acesso a bens, de comércio, de negócio, de actividade económica. De uma realidade muito bem retratada por Don Tapscott, na estimulante Introdução ao livro de Juan Luís Cebrián, La Red: «o mundo desenvolvido está a deixar de ser uma Economia Industrial baseada no aço, nos automóveis e nas estradas para se converter numa Economia Digital baseada no silício, nos computadores e na rede» (CEBRIÁN, J.L. La Red, Madrid, Suma de Letras, 2000: 20). Ou seja, daquela transição que Nicholas Negroponte identificava, em «Being Digital» (1995), como passagem dos átomos aos bits. Mas falamos também da emergência de um universo que não está imune, bem pelo contrário, às práticas desviantes, como a pornografia infantil ou o terrorismo. Falamos, pois, do ponto de vista dos conteúdos, de mundividências, de estilos de vida, de informação e cultura, de economia, de política, de comunicação e de práticas reais, tudo conteúdos circulantes sob forma digital, mas com um impacto decisivo sobre países, grupos sociais e indivíduos singulares. É por isso que a questão não se põe só para os países governados por sistemas autoritários. Ela põe-se também para as democracias ocidentais, sujeitas como estão a desvios claramente incompatíveis com os grandes princípios por que se regem – desde a ciberpirataria até à pornografia ou à pedofilia difusas, ao terrorismo. Trata-se também aqui, afinal, da questão de uma regulação dos fluxos informativos e comunicacionais que circulam na rede universal, que não afecte, todavia, a liberdade responsável. A questão é, porém, bem mais complexa do que a que se põe aos meios de comunicação tradicionais, sabendo nós que, afinal, a própria regulação dos media tem sido tão sensível quão difícil e complexa, até quase à impraticabilidade. Porque a Rede tem uma dimensão global, tratando-se, ao mesmo tempo, de um sistema muito mais complexo, estruturado a partir de uma lógica relacional (a da relação «many-to-many»), massificado, mas individualmente centrado, com diversas modulações de acesso, emissão, recepção e interacção e sem centros de comando equivalentes aos dos media tradicionais. Uma regulação, portanto, muito mais difícil e complexa. Além disso, neste mundo da globalização de processos e da comunicação continuam a manter-se as soberanias nacionais, as lógicas, os processos e as relações locais. E a própria natureza, por mais que se queira, ainda continua a caminhar com os ritmos implacáveis da sua própria e lenta temporalidade. De resto, alguém definiu esta coexistência com uma palavra de compromisso: glocal, ou seja, pensar global e agir local. E a questão também é esta: até que ponto a lógica global tenderá a colonizar a acção local? Ou, então: até que ponto a lógica local tende a reforçar-se e a criar mecanismos de defesa perante uma ameaça de colonização por parte de uma lógica global, exógena, externa? O problema, como se sabe, consiste em compatibilizar a preservação das identidades locais ou nacionais, a sua, digamos, soberania, com a assunção da lógica global, demarcando os planos em que se afirmam ambas. No fundo, é sempre a questão da relação entre sistema e indivíduo, entre universal e particular, lá onde é sempre indesejável que um subsuma o outro, sobretudo, aqui, onde desapareceram os mediadores. Foi por isso que se formulou essa ideia de traduzir o pensamento global na linguagem da identidade local: glocal. Mas a questão é incontornável: pode um Estado autoritário conviver com uma informação sem fronteiras - suportada, além disso, numa infra-estrutura global, como é a Rede -, mesmo que se trate de um despotismo iluminado? O que regressa sempre ao debate é a própria questão democrática. E, assim, a questão de um novo espaço público deliberativo que remete mais para o indivíduo singular do que para as grandes organizações. De resto, a questão da compatibilidade entre as identidades nacionais e uma cidadania universal (embora ele estivesse mais preocupado em fundamentar uma cidadania europeia) foi muito bem analisada e demonstrada por Habermas num texto sobre «Cidadania e identidade nacional» (HABERMAS, J., Cittadinanza e identità nazionale, in MicroMega 5/91, Roma, pp. 123-146).
II. Uma mudança de paradigma no espaço público deliberativo
A verdadeira questão reside, pois, na natureza do novo espaço público que resultou da emergência da rede e da sua interacção com media convencionais que, no interior do seu limitado modelo de comunicação, também já falavam uma linguagem global, embora sempre na óptica da relação emissor-receptor, enquanto relação sujeito-objecto. Ou relação «one-to-many», como diz Castells, mais afim a uma lógica de natureza instrumental.
Longe vão, pois, os tempos em que o espaço público era a rua ou a praça ou em que estava delimitado apenas pelas fronteiras da imprensa ou dos media convencionais, como a televisão. Este era um espaço controlado pelos chamados «gatekeepers», pelos Senhores da Opinião, pelos «Cães de guarda» do público, por aqueles que venho designando como «agentes orgânicos do poder mediático», os que ocupam com regularidade um espaço nos «púlpitos» (e nas «sacristias») do sistema mediático. E é claro que este espaço tanto era um espaço de livre informação, opinião e saber, capaz de descodificar para os cidadãos o exercício do poder, como se transformara também num espaço instrumental para conquistar, preservar e reproduzir poder. Este tornou-se também naquele espaço onde os «spin doctors» manipulavam para desviar atenções e orientar a agenda pública ao sabor de interesses muito resguardados, fossem eles políticos ou económicos, de governo ou de oposição.
Ora a rede, com todo o arsenal de instrumentos de acesso directo ao espaço público que ela própria integra e configura, veio alterar tudo isto, dando a possibilidade aos cidadãos de acederem directamente à informação, mas também ao próprio espaço editorial, tornando-se eles próprios produtores de informação e de opinião. Neste sentido, a rede veio relativizar o poder dos media convencionais, construindo um novo espaço público muito mais complexo e muito mais democrático, capaz de revolucionar as próprias relações entre o poder mediático, o poder económico, o poder político e os cidadãos.
III. O novo espaço público deliberativo e os seus inimigos
Manuel Castells identificou, em «Communication, Power and Counter-Power in the Network Society» (in «International Journal of Communication», Vol. 1, 2007), esta nova realidade através do conceito de «mass self communication», de comunicação individual de massas. Conceito que até parece, à primeira vista, contraditório, já que a afirmação individual resiste à ideia de uma sua anulação nesse universo compacto das massas. Mas é por isso mesmo que ele é interessante. Com efeito, quando se fala deste universo, na «mass self communication», fala-se na capacidade expansiva universal do sistema em rede, precisamente a partir de pólos individuais, mas múltiplos ao infinito. Lá onde o acesso é directo e sem mediações, mas onde, por isso mesmo, esta possibilidade de expansão está condicionada, à partida, pelas competências do próprio emissor individual, pela sua capacidade de produzir conteúdos consistentes e de os difundir no interior do sistema, pela sua genialidade e também pela sua capacidade de entrar no sistema dos media convencionais, ainda indispensáveis para uma boa difusão na própria rede. Trata-se, pois, de uma poderosa revolução que permite agir directamente no interior do espaço público como nunca, antes, acontecera. Um espaço público que, agora sim, pode ser considerado como um verdadeiro espaço público deliberativo. Mas é por isso mesmo que muitos – por exemplo, o próprio Castells - já começam a chamar a atenção para as manobras vastíssimas que se estão a verificar neste espaço, o da rede, não só através da sua ocupação pelos media convencionais, no plano dos conteúdos e dos seus «agentes orgânicos», mas também internamente, por parte de grupos ou de países – como a China, com a sua «Grande Muralha de Fogo», ou seja, a censura online da República Popular - que temem que este se venha a transformar num perigoso espaço de contrapoder, ameaçador de uma ordem que não pode conviver com a liberdade própria deste novo espaço público deliberativo. Diz Castells: as elites dominantes vêem-se, assim, desafiadas por movimentos sociais, projectos de autonomia individual ou políticas insurreccionais que encontram um ambiente muito mais favorável nesse universo emergente da «mass self communication». Deste modo, ao que se assiste é a uma nova fase e a um novo modo de construção do poder no espaço de comunicação, quando os poderosos compreendem que é necessário responder ao desafio lançado pelos networks de comunicação horizontal. Que significa isto, diz ele? Significa ter necessidade de vigiar a Internet, como acontece nos USA, apesar de nem assim conseguirem evitar as constantes intrusões no seu sistema, designadamente por parte da China, tendo-se registado, só entre Janeiro e Junho de 2009, 43.785 casos de ciberpirataria, no que vem sendo uma subida exponencial desde 2000 (de 1415 para 87.570, em 2009) (Fonte: Reuter/La Repubblica); de controlar manualmente o correio electrónico, se não se dispuser de um robot em condições de o fazer, como comprovado pelas últimas descobertas na China, onde, segundo Federico Rampini, 15.000 técnicos trabalham em permanência no controlo da informação, muitas vezes usando os mesmos métodos dos ciberpiratas; de tratar os utentes da Internet como piratas e vigaristas, como está abundantemente previsto na legislação da UE; de adquirir «sítios» da WEB de social networking, para controlar as suas comunidades; de adquirir as infraestruturas de rede para fazer discriminações nos direitos de acesso. Em suma, de recorrer a tantas tácticas de controlo e de delimitação daquele que é o mais recente modelo de espaço de comunicação.
Isto diz Castells. E com isso ele quer dizer que esta grande revolução no espaço público começa agora, muito antes de ter despoletado a suas imensas e exponenciais capacidades, a conhecer ela própria a sua própria contra-revolução. Porque do que aqui se trata, de facto, não é ainda, infelizmente, da desejada regulação, mas de controlo, de censura e de ciberespionagem. Ou mesmo de desqualificação, por parte de personagens insuspeitos, Finkielkraut o Séguéla, que, num momento certamente menos feliz, ousaram considerar a Net como «poubelle de la democratie» ou como «la plus grande saloperie jamais inventée» («Nouvel Observateur», Nov./Dez., 2009). Uma coisa é certa: o mundo não volta para trás e a natureza da Internet é tal que o controlo se torna cada vez mais difícil. O que eu creio é que ela já nos trouxe mais coisas positivas do que negativas. E uma delas é a do poder que o indivíduo singular readquiriu, ao libertar-se desses intermediários que tendem sempre a transformar a mediação em princípio e fim do processo democrático. Como dizia Bill Gates: «a China, de qualquer modo, será melhor do que antes, graças a nós». Mas eu creio que não é só a China: é o mundo em geral.
Fuente
«Nuestro objetivo es cambiar el mundo»
Eric Schmid, chefe executivo do Google
I. «Senhor HU, deite abaixo este Grande Firewall!»
Regresso a um tema que ganha cada vez mais importância nos dias que correm. A propósito do caso Google/China, alguém já falou de um combate digital entre um David e um Golias. Outros dizem que só a consciência da própria força é que permitiu ao Google enfrentar abertamente o colosso chinês, em vez de negociar nos bastidores, como é próprio do mundo empresarial (PISANI, Francis, “Cyber power”: Google se enfrenta a China «EL País», 02.02.10, p. 27). A questão motivou uma intervenção de Hillary Clinton, exigindo publicamente respeito pela Web a nível global e defendendo a liberdade universal online. Com refere Timothy Garton Ash (La guerra fredda digitale tra USA e Cina, «La Repubblica», 1.2.10, p. 27), sem ser tão radical como Ronald Reagan - quando, dirigindo-se a Gorbatchov, disse, em Berlim, «Senhor Gorbatchov, deite abaixo este Muro» -, Hillary disse, de facto: «Senhor Hu, deite abaixo este Grande Firewall»!
Sobretudo, o que está em questão, com a actualíssima questão chinesa (ou iraniana), é a relação entre a universalidade da Rede, a liberdade individual e as soberanias nacionais. Questão que se põe à China ou ao Irão, outro protagonista da censura digital, e em geral àqueles que já são considerados, pelos Repórteres Sem Fronteiras (ALANDETE, David, La red espía tus movimientos, in «El País» 08.02.10, p. 32-33) , como «os 12 inimigos da Internet» (Cuba, Egipto, Coreia do Norte, Síria, Tunísia, Arábia Saudita, Vietname, Myanmar, Turkemenistão e Uzbekistão, além da China e do Irão), mas que se põe também às democracias ocidentais. É claro que a verdadeira questão é a questão da liberdade de informação e de comunicação, sobretudo quando, por um lado, estamos perante uma escala global e um acesso globalmente livre (em teoria) e, por outro, estamos perante sistemas políticos nacionais mais ou menos autoritários, tradicionalistas ou fundamentalistas, que não podem conviver com a livre circulação da informação, vertical ou horizontal que seja. E também é claro que não podemos falar somente em liberdade política, de opinião, de informação e de acesso ao conhecimento. Falamos também de entretenimento, de acesso a bens, de comércio, de negócio, de actividade económica. De uma realidade muito bem retratada por Don Tapscott, na estimulante Introdução ao livro de Juan Luís Cebrián, La Red: «o mundo desenvolvido está a deixar de ser uma Economia Industrial baseada no aço, nos automóveis e nas estradas para se converter numa Economia Digital baseada no silício, nos computadores e na rede» (CEBRIÁN, J.L. La Red, Madrid, Suma de Letras, 2000: 20). Ou seja, daquela transição que Nicholas Negroponte identificava, em «Being Digital» (1995), como passagem dos átomos aos bits. Mas falamos também da emergência de um universo que não está imune, bem pelo contrário, às práticas desviantes, como a pornografia infantil ou o terrorismo. Falamos, pois, do ponto de vista dos conteúdos, de mundividências, de estilos de vida, de informação e cultura, de economia, de política, de comunicação e de práticas reais, tudo conteúdos circulantes sob forma digital, mas com um impacto decisivo sobre países, grupos sociais e indivíduos singulares. É por isso que a questão não se põe só para os países governados por sistemas autoritários. Ela põe-se também para as democracias ocidentais, sujeitas como estão a desvios claramente incompatíveis com os grandes princípios por que se regem – desde a ciberpirataria até à pornografia ou à pedofilia difusas, ao terrorismo. Trata-se também aqui, afinal, da questão de uma regulação dos fluxos informativos e comunicacionais que circulam na rede universal, que não afecte, todavia, a liberdade responsável. A questão é, porém, bem mais complexa do que a que se põe aos meios de comunicação tradicionais, sabendo nós que, afinal, a própria regulação dos media tem sido tão sensível quão difícil e complexa, até quase à impraticabilidade. Porque a Rede tem uma dimensão global, tratando-se, ao mesmo tempo, de um sistema muito mais complexo, estruturado a partir de uma lógica relacional (a da relação «many-to-many»), massificado, mas individualmente centrado, com diversas modulações de acesso, emissão, recepção e interacção e sem centros de comando equivalentes aos dos media tradicionais. Uma regulação, portanto, muito mais difícil e complexa. Além disso, neste mundo da globalização de processos e da comunicação continuam a manter-se as soberanias nacionais, as lógicas, os processos e as relações locais. E a própria natureza, por mais que se queira, ainda continua a caminhar com os ritmos implacáveis da sua própria e lenta temporalidade. De resto, alguém definiu esta coexistência com uma palavra de compromisso: glocal, ou seja, pensar global e agir local. E a questão também é esta: até que ponto a lógica global tenderá a colonizar a acção local? Ou, então: até que ponto a lógica local tende a reforçar-se e a criar mecanismos de defesa perante uma ameaça de colonização por parte de uma lógica global, exógena, externa? O problema, como se sabe, consiste em compatibilizar a preservação das identidades locais ou nacionais, a sua, digamos, soberania, com a assunção da lógica global, demarcando os planos em que se afirmam ambas. No fundo, é sempre a questão da relação entre sistema e indivíduo, entre universal e particular, lá onde é sempre indesejável que um subsuma o outro, sobretudo, aqui, onde desapareceram os mediadores. Foi por isso que se formulou essa ideia de traduzir o pensamento global na linguagem da identidade local: glocal. Mas a questão é incontornável: pode um Estado autoritário conviver com uma informação sem fronteiras - suportada, além disso, numa infra-estrutura global, como é a Rede -, mesmo que se trate de um despotismo iluminado? O que regressa sempre ao debate é a própria questão democrática. E, assim, a questão de um novo espaço público deliberativo que remete mais para o indivíduo singular do que para as grandes organizações. De resto, a questão da compatibilidade entre as identidades nacionais e uma cidadania universal (embora ele estivesse mais preocupado em fundamentar uma cidadania europeia) foi muito bem analisada e demonstrada por Habermas num texto sobre «Cidadania e identidade nacional» (HABERMAS, J., Cittadinanza e identità nazionale, in MicroMega 5/91, Roma, pp. 123-146).
II. Uma mudança de paradigma no espaço público deliberativo
A verdadeira questão reside, pois, na natureza do novo espaço público que resultou da emergência da rede e da sua interacção com media convencionais que, no interior do seu limitado modelo de comunicação, também já falavam uma linguagem global, embora sempre na óptica da relação emissor-receptor, enquanto relação sujeito-objecto. Ou relação «one-to-many», como diz Castells, mais afim a uma lógica de natureza instrumental.
Longe vão, pois, os tempos em que o espaço público era a rua ou a praça ou em que estava delimitado apenas pelas fronteiras da imprensa ou dos media convencionais, como a televisão. Este era um espaço controlado pelos chamados «gatekeepers», pelos Senhores da Opinião, pelos «Cães de guarda» do público, por aqueles que venho designando como «agentes orgânicos do poder mediático», os que ocupam com regularidade um espaço nos «púlpitos» (e nas «sacristias») do sistema mediático. E é claro que este espaço tanto era um espaço de livre informação, opinião e saber, capaz de descodificar para os cidadãos o exercício do poder, como se transformara também num espaço instrumental para conquistar, preservar e reproduzir poder. Este tornou-se também naquele espaço onde os «spin doctors» manipulavam para desviar atenções e orientar a agenda pública ao sabor de interesses muito resguardados, fossem eles políticos ou económicos, de governo ou de oposição.
Ora a rede, com todo o arsenal de instrumentos de acesso directo ao espaço público que ela própria integra e configura, veio alterar tudo isto, dando a possibilidade aos cidadãos de acederem directamente à informação, mas também ao próprio espaço editorial, tornando-se eles próprios produtores de informação e de opinião. Neste sentido, a rede veio relativizar o poder dos media convencionais, construindo um novo espaço público muito mais complexo e muito mais democrático, capaz de revolucionar as próprias relações entre o poder mediático, o poder económico, o poder político e os cidadãos.
III. O novo espaço público deliberativo e os seus inimigos
Manuel Castells identificou, em «Communication, Power and Counter-Power in the Network Society» (in «International Journal of Communication», Vol. 1, 2007), esta nova realidade através do conceito de «mass self communication», de comunicação individual de massas. Conceito que até parece, à primeira vista, contraditório, já que a afirmação individual resiste à ideia de uma sua anulação nesse universo compacto das massas. Mas é por isso mesmo que ele é interessante. Com efeito, quando se fala deste universo, na «mass self communication», fala-se na capacidade expansiva universal do sistema em rede, precisamente a partir de pólos individuais, mas múltiplos ao infinito. Lá onde o acesso é directo e sem mediações, mas onde, por isso mesmo, esta possibilidade de expansão está condicionada, à partida, pelas competências do próprio emissor individual, pela sua capacidade de produzir conteúdos consistentes e de os difundir no interior do sistema, pela sua genialidade e também pela sua capacidade de entrar no sistema dos media convencionais, ainda indispensáveis para uma boa difusão na própria rede. Trata-se, pois, de uma poderosa revolução que permite agir directamente no interior do espaço público como nunca, antes, acontecera. Um espaço público que, agora sim, pode ser considerado como um verdadeiro espaço público deliberativo. Mas é por isso mesmo que muitos – por exemplo, o próprio Castells - já começam a chamar a atenção para as manobras vastíssimas que se estão a verificar neste espaço, o da rede, não só através da sua ocupação pelos media convencionais, no plano dos conteúdos e dos seus «agentes orgânicos», mas também internamente, por parte de grupos ou de países – como a China, com a sua «Grande Muralha de Fogo», ou seja, a censura online da República Popular - que temem que este se venha a transformar num perigoso espaço de contrapoder, ameaçador de uma ordem que não pode conviver com a liberdade própria deste novo espaço público deliberativo. Diz Castells: as elites dominantes vêem-se, assim, desafiadas por movimentos sociais, projectos de autonomia individual ou políticas insurreccionais que encontram um ambiente muito mais favorável nesse universo emergente da «mass self communication». Deste modo, ao que se assiste é a uma nova fase e a um novo modo de construção do poder no espaço de comunicação, quando os poderosos compreendem que é necessário responder ao desafio lançado pelos networks de comunicação horizontal. Que significa isto, diz ele? Significa ter necessidade de vigiar a Internet, como acontece nos USA, apesar de nem assim conseguirem evitar as constantes intrusões no seu sistema, designadamente por parte da China, tendo-se registado, só entre Janeiro e Junho de 2009, 43.785 casos de ciberpirataria, no que vem sendo uma subida exponencial desde 2000 (de 1415 para 87.570, em 2009) (Fonte: Reuter/La Repubblica); de controlar manualmente o correio electrónico, se não se dispuser de um robot em condições de o fazer, como comprovado pelas últimas descobertas na China, onde, segundo Federico Rampini, 15.000 técnicos trabalham em permanência no controlo da informação, muitas vezes usando os mesmos métodos dos ciberpiratas; de tratar os utentes da Internet como piratas e vigaristas, como está abundantemente previsto na legislação da UE; de adquirir «sítios» da WEB de social networking, para controlar as suas comunidades; de adquirir as infraestruturas de rede para fazer discriminações nos direitos de acesso. Em suma, de recorrer a tantas tácticas de controlo e de delimitação daquele que é o mais recente modelo de espaço de comunicação.
Isto diz Castells. E com isso ele quer dizer que esta grande revolução no espaço público começa agora, muito antes de ter despoletado a suas imensas e exponenciais capacidades, a conhecer ela própria a sua própria contra-revolução. Porque do que aqui se trata, de facto, não é ainda, infelizmente, da desejada regulação, mas de controlo, de censura e de ciberespionagem. Ou mesmo de desqualificação, por parte de personagens insuspeitos, Finkielkraut o Séguéla, que, num momento certamente menos feliz, ousaram considerar a Net como «poubelle de la democratie» ou como «la plus grande saloperie jamais inventée» («Nouvel Observateur», Nov./Dez., 2009). Uma coisa é certa: o mundo não volta para trás e a natureza da Internet é tal que o controlo se torna cada vez mais difícil. O que eu creio é que ela já nos trouxe mais coisas positivas do que negativas. E uma delas é a do poder que o indivíduo singular readquiriu, ao libertar-se desses intermediários que tendem sempre a transformar a mediação em princípio e fim do processo democrático. Como dizia Bill Gates: «a China, de qualquer modo, será melhor do que antes, graças a nós». Mas eu creio que não é só a China: é o mundo em geral.
Fuente